quarta-feira, fevereiro 06, 2008

"Smile": a obra-prima adiada de BRIAN WILSON

"Smile": a obra-prima adiada de BRIAN WILSON

Em Fevereiro de 2004, o Royal Festival Hall de Londres teve a oportunidade de assistir à série de concertos em que Brian Wilson recuperou e tocou na íntegra “Smile”, o álbum perdido dos Beach Boys. Na plateia, ao longo de seis noites, seguidores de todo o mundo misturavam-se com Robert Plant, Roger Daltrey, George Martin ou Bobby Gillespie. O silêncio absoluto com que “Smile” foi ouvido pelos devotos foi contraposto pela esmagadora aclamação no final do concerto e nas semanas que se seguiram.
Nada de surpreendente tendo em conta que fenômeno idêntico já se tinha passado quando Brian apresentou em 2003 a sua triunfante “Pet Sounds Tour”, na qual interpretava na íntegra o igualmente mítico álbum de 1966. Foi uma espécie de cerimônia onde Brian estava afinal a pregar aos convertidos. A maioria do público estava familiarizada com a lenda de “Smile”, o álbum gravado pelos Beach Boys entre 1966 e 1967 e que nunca veria a luz do dia, tendo sido substituído por um sucedâneo, “Smiley Smile”, que repescou algumas canções de “Smile” em versão mais convencional.
A história da concepção e do desaparecimento de “Smile” é bem conhecida: Em 1966, Brian já havia renunciado à maioria dos concertos ao vivo dos Beach Boys para se dedicar em exclusivo à composição. O encontro com Van Dyke Parks fez ver a Brian que tinha um parceiro com letras à altura das suas composições. Wilson preparava-se então para gravar “Dumb Angel”, o “working title” do sucessor de “Pet Sounds”. O duo trabalhou entre Julho e Setembro, ao mesmo tempo que Brian gravava o single “Good Vibrations”. Por essa altura o projecto assumiu o nome “Smile” e chegou a ser executada a capa e o booklet pelo artista californiano Frank Holmes.
A apresentação de “Smile” estava prevista para o Natal de 1966. 466,000 capas foram impressas e anúncios foram publicados. No entanto, Brian não conseguia terminar o seu projecto, as gravações afinal continuavam e os incidentes sucediam-se: um incêndio no prédio contíguo ao estúdio durante a gravação de “Fire”, o abandono de Van Dyke Parks em Março de 1967, os desentendimentos entre os membros da banda, em especial entre Brian e Mike Love.
O lançamento foi sendo sucessivamente adiado até que Derek Taylor, o relações públicas do grupo, anunciou em Maio que “Smile” não seria lançado. Ainda nesse ano os Beach Boys ainda repescaram “Heroes And Villains” e regravaram “Wonderful, Wind Chimes” e “Vegetables“ para “Smiley Smile”. A partir daqui Brian sempre rejeitou recuperar o projecto ou as suas canções. As aparições posteriores do restante material de “Smile” (“Cabinessence”, “Our Prayer” e “Surf’s Up”) são da responsabilidade de Carl e Dennis Wilson, que as regravaram ou se limitaram ao overdubbing das gravações originais. Na história dos Beach Boys “Smile” não é o único álbum perdido. “Landlocked”, gravado em 1971 foi cancelado e substituído por “Surf’s Up” e, em 1977, “Adult Child” e o disco de Natal “Merry Christmas From The Beach Boys” foram gravados mas nunca chegaram a ser editados.
Mas “Smile” tem um lugar à parte neste canto da cultura popular e, em particular, na mitologia dos “lost albums”. Sobre ele especulou-se ao longo de 30 anos. Críticos como Paul Williams, David Leaf e Timothy White alimentaram o culto, Dominic Priore escreveu um tomo inteiro dedicado ao assunto – o excelente “Look! Listen! Vibrate! SMILE!” – surgem vários sites (o thesmileshop.net é de visita obrigatória) e até uma revista chegou a ser publicada (fishwarp). Entretanto, desde 1988 que, primeiro um pequeno círculo de iniciados e depois o público em geral, teve acesso a vários fragmentos das gravações através de inúmeras bootlegs (destacam-se a edição em duplo CD da Vigotone e a antologia tripla da Sea of Tunes).
Estes testemunhos abriram a porta a todo o tipo de especulações. Para os cépticos, era uma obra menor de um génio indulgente, para os devotos, uma obra-prima inacabada, o grande “song cycle” dos anos 60. A sua estrutura, composta por três movimentos, seriam um fresco da música americana do Século XX através da visão de Brian: o primeiro movimento, denominado "Americana" integra as canções com temas dos pioneiros e do velho oeste. O segundo movimento, intitulado "Childhood", diz respeito à infância e à inocência e o último movimento, "Elements" era afinal uma suite dedicada aos quatro elementos da natureza.
Projecto ambicioso, sem paralelo na cena pop americana dos anos 60, muito embora outro génio contemporâneo de Brian – Roger McGuinn dos Byrds –, tivesse aspirado a algo semelhante em 1968 quando se abalançou, sem sucesso, na escrita de um “concept álbum” que encerrasse as várias músicas da América do Século XX. Afinal o que significa este “Smile” de 2004? Trata-se de uma regravação e não do aproveitamento de qualquer das peças gravadas entre 1967 e 1968. A idéia surgiu quando Darian Sahanaja (líder dos notáveis Wondermints e director musical da banda de suporte de Brian) e Van Dyke Parks, preparavam em conjunto com Brian os concertos do Royal Festival Hall e a digressão subsequente.
O exercício também não é novo. Afinal, o “Let It Be” dos Beatles foi totalmente overdubbed por Phil Spector (para ser relançado no ano passado sem os acrescentos) e outro génio da música americana – John Fahey –, regravava frequentemente as suas obras: o clássico “Blind Joe Death” tem, pelo menos, três interpretações inteiramente diferentes. O próprio Brian Wilson tem uma longa tradição de aproveitar canções ou apenas fragmentos antigos anos mais tarde, hábito que caracteriza também a obra de John Lennon ou de Lou Reed. As sessões de estúdio de 2003 vieram permitir, enfim, dar coerência aos fragmentos dispersos e fazer justiça ao rigor quase marcial com que Brian sempre comandou os músicos em estúdio.
Esta não é a obra de um diletante, um capricho irregular alimentado a ácidos. Também não é um “concept album” no sentido ortodoxo do termo. Há uma organização dentro da aparente falta de ligação temática das letras imaginadas por Van Dyke Parks. “Smile” toma agora a sua verdadeira dimensão e o lugar de destaque, adiado por mais 30 anos, na música popular norte-americana, da qual é uma síntese perfeita, cobrindo da folk ao country, das toadas dos pioneiros do Mayflower às sofisticadas suites de Gershiwn, passando pelas canções de Cole Porter e pelo jazz de Miles Davis.
A nova versão de “Smile” serve também para confirmar que o disco sempre foi de Brian Wilson e Van Dyke Parks e não um projecto colectivo dos Beach Boys, e que tem muito mais afinidades com “Song Cycle” e “Discover America” – outras duas belíssimas sínteses da música popular norte-americana da autoria deste último –, do que com “Pet Sounds”.
Se “Smile” tivesse sido lançado em 1967 seria um dos álbuns do ano. Em 2004 foi o álbum do ano.


Texto de Antônio Alves - Fonte: Mondo Bizarre

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